DOIS FORASTEIROS FLAGRADOS NO SISTEMA SOLAR

O texto a seguir é uma obra do Prof. Oscar Matsuura, pesquisador e professor aposentado do Depto. de Astronomia da USP, sobre os dois primeiros objetos interestelares recentemente descobertos, o Oumuamua e o Borisov, que estão passando pelo Sistema Solar.

DOIS FORASTEIROS FLAGRADOS NO SISTEMA SOLAR

Oscar T. Matsuura

Professor Associado aposentado do IAG/USP

Pesquisador Colaborador do MAST/MCTIC

Oumuamua

O telescópio Pan-STARRS 1 (Panoramic Survey Telescope And Rapid Response System), com um espelho de 1,8 m de diâmetro, está instalado no topo do vulcão Haleakala, na ilha Maui, no Havaí. Ele é dedicado à observação de pequenos corpos celestes (> 140 m) em órbitas que podem trazê-los perigosamente para perto da Terra até uma eventual colisão. Tais corpos são conhecidos pela sigla NEOs em inglês: Near-Earth Objects. Com esse telescópio, em 19/10/2017, foi descoberto um objeto assaz estranho, que até criou um problema de nomenclatura. Por se tratar do primeiro objeto procedente de uma outra estrela, de que se tem notícia, a passar pelo Sistema Solar, ele foi denominado 1I/2017 U1 (1I denota 1º objeto interestelar) e recebeu também o nome Oumuamua, “batedor” em havaiano. Quarenta dias antes, esse objeto já tinha passado pelo periélio, isto é, pelo ponto da órbita de maior aproximação ao Sol. A descoberta foi comunicada à Central de Cometas e Asteroides sediada ao norte de Boston que, em nome da União Astronômica Internacional, cuida da confirmação da descoberta e da designação, catalogação e divulgação de novos objetos descobertos.

O Oumuamua causou estranheza porque tinha a forma alongada de um charuto (Figura 1). Além disso, se afastava do Sol ao longo de uma das pernas da órbita hiperbólica, com formato da letra “U”, depois de já ter passado perto do Sol, aproximando-se dele ao longo da outra perna do “U” (Figura 2). Mas a velocidade de afastamento do Sol, de cerca de 25,6 km/s, era tão grande que excluía a possibilidade de o Oumuamua ser do próprio Sistema Solar. Isto é, sua velocidade era maior que a “velocidade de escape” para que ficasse retido no Sistema Solar. Por conseguinte, o seu destino, depois de passear pelo Sistema Solar por dezenas de milhares de anos, será abandoná-lo definitivamente.

Figura 1. Representação artística do Oumuamua com a forma alongada de um charuto. Fonte: http://www.sci-news.com/astronomy/oumuamua-smaller-highly-reflective-surface-06617.html

Figura 2. Órbita do Oumuamua com a forma da letra “U”. Em amarelo (vermelho) acima (abaixo) do plano da eclíptica. A posição do Oumuamua uma semana após a descoberta é indicada pela seta. Fonte: http://mentalfloss.com/article/516495/earths-first-recorded-interstellar-visitor-gets-its-closeup-and-name

Cometas e asteroides são corpos menores do Sistema Solar, considerados restos da matéria da Nebulosa Solar Primitiva não aproveitados para a formação de planetas e satélites. Os cometas acabaram se alojando bem longe do Sol. Ali, mesmo por bilhões de anos, eles são capazes de reter congelada a matéria volátil primitiva de que foram formados. Os asteroides, em geral mais rochosos ou metálicos, se alojam no Anel de Asteroides, orbitando mais perto do Sol, entre as órbitas de Marte e de Júpiter. Que alguns cometas e asteroides do nosso próprio Sistema Solar possam ocasionalmente escapar da atração gravitacional do Sol e viajar para outros sistemas estelares, já era algo considerado natural pelos astrônomos. De fato, um cometa descoberto em 1980, dois anos antes de sua passagem pelo periélio, continuou sendo observado até 1986, e a análise de seu movimento mostrou que sua órbita se tornou hiperbólica (e=1,054, ver adiante) provavelmente após uma aproximação a Júpiter, que o deve ter catapultado para fora do Sistema Solar. Assim, seria natural também que algum asteroide ou cometa de uma outra estrela passasse um dia pelo nosso Sistema Solar. No entanto, isso só foi testemunhado por nós com a descoberta do Oumuamua.

Rapidamente essa notícia se propagou e grandes telescópios do mundo inteiro foram apontados para o ilustre visitante. Em solo essas observações foram estendidas até o final de 2017. Do espaço, o Telescópio Espacial Hubble o observou pela última vez no início de 2018, quando sua magnitude era 27 (a magnitude de um astro é tanto maior, quanto menor for o seu brilho).

Do conjunto das observações feitas, concluiu-se que o Oumuamua tinha apenas dezenas de metros de largura contra centenas de metros de comprimento. Sua cor era vermelho-escura, indicativa de que o material que o compunha era denso e metálico, cuja superfície havia sido bombardeada no espaço por muito tempo por raios cósmicos de alta energia. Raios cósmicos são partículas subatômicas eletricamente carregadas, que viajam no espaço cósmico com velocidade próxima à da luz, que é de 300 mil km/s. Na maioria consistem em prótons. Felizmente na superfície da Terra, onde estamos, os raios cósmicos primários, que vêm das mais diversas direções do céu, colidem com as moléculas e os átomos da nossa atmosfera. Como resultado, os raios cósmicos primários se fragmentam formando os chamados chuveiros de raios cósmicos secundários. Estes chegam na superfície da Terra, mas com menor energia e menor capacidade de lesar nossas células e tecidos, ainda que a proteção da nossa atmosfera não seja total. Um fragmento rochoso, como um meteorito, pode ser lançado ao espaço e nele ficar viajando por um longo tempo. Um raio cósmico primário que atinge a superfície do meteorito, com sua alta energia pode penetrar no seu interior e fragmentar o núcleo dos átomos que compõem o meteorito e, assim, gerar novos núcleos atômicos chamados cosmogênicos. Isso consiste em verdadeiras reações nucleares que dão origem a novos átomos e isótopos. A análise desse meteorito em laboratório, comparando a quantidade de núcleos cosmogênicos com a quantidade de núcleos originais do meteorito, permite estimar o tempo de exposição do meteorito à radiação cósmica, ou seja, o tempo que ele ficou viajando no espaço.

As observações revelaram também que o Oumuamua não girava propriamente em torno de um eixo principal, mas dava cambalhotas acrobáticas, justamente porque girava, ao mesmo tempo, em torno de diferentes eixos de um corpo de formato irregular. A periodicidade dessas cambalhotas variava entre 7 e 8 horas. Ela é inferida através da chamada “curva de luz” que é o gráfico da variação do brilho ao longo do tempo. Tratando-se de um objeto de forma irregular (não esférico), a quantidade de luz solar que é refletida na direção do observador não é constante, mas é modulada pela rotação ou cambalhotas do objeto no espaço.

Não foi possível definir com precisão a direção de origem do Oumuamua, mas a direção genérica era a da constelação da Lira, aquela que abriga a brilhante estrela Vega situada no bordo Norte da Via Láctea. Essa direção não se afasta muito do chamado “ápex solar”, que é a direção para o qual o Sol e, portanto, o Sistema Solar se desloca na Galáxia em relação às estrelas vizinhas, a uma velocidade de cerca de 13,4 km/s. Como resultado desse deslocamento, o ápex solar é a direção mais provável de recepção de objetos externos ao Sistema Solar.

Pesquisadores do Instituto Max Planck de Astronomia em Heidelberg, na Alemanha, traçaram a órbita do Oumuamua anterior à sua entrada no Sistema Solar, assim como de estrelas da nossa Galáxia com o intuito de descobrir a intersecção, ou mesmo o local de aproximação do Oumuamua com alguma estrela particular que a pudesse ter lançado ao espaço interestelar. Os dados sobre o movimento das estrelas eram os que tinham sido obtidos pelo Observatório Espacial Gaia, lançado pela Agência Espacial Europeia (ESA) em 2013 e que estará operando até 2022. Esse Observatório realiza medições da posição, distância e movimento de 7 milhões de estrelas da nossa Galáxia, com precisão jamais alcançada. Os pesquisadores encontraram 4 estrelas candidatas, mas os próprios pesquisadores, em virtude das grandes incertezas envolvidas nesta análise, se mostraram céticos de que qualquer delas tenha realmente ejetado o Oumuamua. Uma incerteza fundamental é que ninguém sabe se um visitante forasteiro foi ejetado por uma estrela e chegou ao Sistema Solar, ou se ele perambula há muito mais tempo pela Galáxia e teve sua longa trajetória alterada inúmeras vezes por inúmeras estrelas.

Logo no início o Oumuamua foi classificado como um cometa, no entanto ele não desenvolveu uma cabeleira gasosa que é usual quando cometas, compostos de gelos, se aproximam do Sol. Por isso os astrônomos resolveram classificá-lo como asteroide que, geralmente, são rochosos ou metálicos. No entanto, em meados de 2018 se verificou que a velocidade de afastamento do Oumuamua era maior que a velocidade esperada, caso ele fosse desacelerado pela atração do Sol. Alguns astrônomos acreditaram que ele estivesse sendo acelerado por forças chamadas “não-gravitacionais” como, por exemplo, por jatos de gases, como ocorre em cometas. No entanto, tais jatos não foram observados e essa hipótese de aceleração não-gravitacional sofreu crítica e a sugestão de que, em vez dela, poderia ter ocorrido uma fratura do objeto e alteração da rotação. Já os defensores de aceleração por jatos argumentaram que os grãos de poeira ejetados seriam de tamanho maior, o que reduziria o seu brilho. Essa controvérsia não foi resolvida.

As observações feitas por um período de tempo mais prolongado permitiram determinar com melhor precisão a órbita do Oumuamua, cuja excentricidade simbolizada pela letra e, parâmetro que determina a forma circular (e=0), elíptica (0<e<1), parabólica (e=1) ou hiperbólica (e>1) da órbita, era 1,2 – o maior valor de excentricidade até então determinado para um corpo no Sistema Solar. Tal excentricidade significa que a órbita de Oumuamua é aberta e hiperbólica e que ele se move a uma velocidade maior que a velocidade de escape do Sistema Solar.

A bizarrice do Oumuamua atiçou a imaginação dos estudiosos. Em pouco tempo cerca de uma centena de artigos científicos foram publicados em periódicos especializados. Alguns radioastrônomos tentaram detectar sinais de rádio inteligentes, cogitando se tratar de algum engenho artificial extraterrestre, por exemplo, um veleiro espacial propelido pela pressão da luz estelar. Esses radioastrônomos analisaram as escutas feitas diuturnamente entre 72 e 102 MHz por um conjunto de várias antenas numa remota região ocidental da Austrália chamada Murchison, mas eles nada encontraram. A ideia de que o Oumuamua seria um objeto artificial foi vigorosamente rechaçada por outros pesquisadores. Embora admitissem que o Oumuamua se mostrasse esquisito e misterioso, ele seria um objeto natural. Outros astrônomos estimaram que 50 milhões de objetos como o Oumuamua devem cruzar o Sistema Solar por ano, e que trilhões deles devem estar cruzando a Via Láctea. Neles microorganismos podem pegar carona para promover a “panspermia” que é uma hipótese de disseminação da vida no Universo. Inclusive a vida na Terra poderia ter tido essa origem.

Embora já haja muitos telescópios ao redor do mundo dedicados à descoberta e acompanhamento de NEOs, um telescópio bem mais poderoso, o Large Synoptic Survey Telescope, com espelho de 8,4 m de diâmetro, está sendo instalado no Chile para detectar com mais detalhe, a partir de 2022, novos Oumuamuas.

Borisov

Mas um novo intruso foi descoberto nas proximidades da constelação de Gêmeos no dia 30 de agosto de 2019, pelo astrônomo amador ucraniano Gennady Borisov, no Observatório MARGO no vilarejo de Nauchnij, na Península da Crimeia. Esse Observatório faz parte da rede ISON (International Scientific Optical Network) dedicada a detectar objetos espaciais, como detritos espaciais e NEOs, e a observar o brilho persistente que perdura vários dias após o fenômeno da erupção de raios gama. Considerado um cometa, o objeto descoberto recebeu a designação C/2019 Q4 (C denota cometa, o ano é o da descoberta, Q é a letra do alfabeto correspondente à quinzena da data da descoberta e 4 é o número serial da descoberta dentro daquela quinzena).

Observações posteriores com um telescópio que opera para a NASA confirmaram que esse objeto também era interestelar (tinha órbita hiperbólica e elevada velocidade), portanto se tornou o segundo objeto interestelar, sendo que o primeiro foi o Oumuamua. A designação oficial passou então a ser 2I/Borisov. Diferentemente do Oumuamua, objeto interestelar que já foi descoberto se afastando do Sol, o 2I/Borisov estava se aproximando do Sol, sendo que ele atingirá o periélio (o ponto da órbita mais próximo ao Sol) no dia 7 de dezembro de 2019. O periélio estará a cerca de 2 UA do Sol, ou seja, mais distante que Marte, cuja distância média ao Sol é 1,5 UA (portanto, a rigor, o 2I/Borisov não é um NEO). O que parece certo é que se trata de um cometa, pois tem vários quilômetros e desenvolveu a seu redor uma cabeleira difusa. Se for mesmo um cometa, seu núcleo congelado deverá sublimar (ou vaporizar) desenvolvendo uma cabeleira à medida que se aproximar do Sol. Ao mesmo tempo o seu brilho deverá aumentar e o cometa deverá permanecer visível através de telescópios de médio porte até abril de 2020. Porém, até meados de outubro as condições de observação não serão favoráveis por se encontrar no céu próximo ao Sol. Mas depois desse período, por ser mais brilhante que o Oumuamua, o Borisov deverá ser intensamente observado. Vale a pena ficar atento às notícias.

A principal lição que os astrônomos já aprenderam é que a visita ao nosso Sistema Solar por objetos extrassolares é mais comum do que imaginávamos. Isso oferece a oportunidade para estudarmos melhor a formação de outros sistemas planetários. Observações espectroscópicas do Borisov revelaram a presença do grupo cianeto (CN) na sua cabeleira. Esse composto é usual nos cometas do Sistema Solar. Portanto há aí uma semelhança na composição química de um cometa interestelar com um cometa do Sistema Solar, mas novas observações devem ser feitas visando desvendar não só semelhanças, mas também eventuais diferenças. Análises preliminares sugerem que a direção de origem do Borisov, na direção da constelação de Cassiopéia, se desvia bastante, cerca de 70o do ápex solar, o que não é desapontador.

Alguns pesquisadores também já andam avaliando a possibilidade de enviar sondas para espiar bem de perto o Oumuamua ou o 2I/Borisov. O mérito científico dessa missão é inquestionável, talvez mais no caso de Oumuamua por ter se mostrado tão exótico. Tudo indica que, com as tecnologias já disponíveis, essa missão é factível. A sonda poderia alcançar o Oumuamua em 28 anos. Uma missão denominada Comet Interceptor (Interceptador de Cometa) da ESA foi inspirada pela chegada do Oumuamua e escolhida em meados deste ano (2019) para ser levada a efeito. Nela três sondas deverão escoltar o cometa em sua trajetória de aproximação ao Sol. Se o 2I/Borisov viesse alguns anos depois, ele bem poderia ser o alvo dessa missão, mas obviamente não poderia tê-la inspirado!

Aqui no Brasil cerca de um mês antes da descoberta do Borisov, no dia 24 de julho de 2019, a equipe de astrônomos amadores liderados por Cristóvão Jacques descobria com um telescópio de 46 cm de diâmetro, instalado em Oliveira, MG (165 km a sudoeste de Belo Horizonte) e operado a distância, um NEO medindo cerca de apenas 100 m. Apesar dessa dimensão pequena em termos astronômicos, esse NEO ao colidir com a superfície da Terra produziria danos catastróficos. Casualmente essa descoberta ocorreu na véspera de sua máxima aproximação à Terra que, no caso, foi de apenas 0,2 da distância da Terra à Lua. Se essa distância fosse menor e se tratasse de colisão, depois do alarme teríamos tido apenas 24 h para nos proteger! Essa ocorrência serviu para demonstrar às autoridades americanas a precariedade do sistema de alerta contra objetos cósmicos que se aproximam perigosamente da Terra. Serviu para a retomada mais séria do projeto de um telescópio espacial (um telescópio espacial não sofre limitações do mau tempo, nem do ofuscamento pelas noites de luar) e dotado de câmara infravermelha. Esses comprimentos de onda favorecem a detecção de pequenos objetos no espaço próximo. Esse projeto já estava encaminhado, mas seu andamento estava sendo prejudicado por uma questão burocrática: estava classificado como uma missão de defesa planetária e não como uma missão científica. Assim, estava tendo que passar por um maior número de instâncias da burocracia. Mas, diante do ocorrido, parece que o medo desatolou o projeto e o telescópio, em princípio, deverá começar a operar em 2025. Esse novo sistema será capaz de descobrir em 10 anos, 90% dos NEOs com dimensão de até 150 m.

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