O texto a seguir é uma obra Prof. Oscar Matsuura, pesquisador e professor aposentado do Depto. de Astronomia da USP, sobre matéria escuro.
MATÉRIA ESCURA, DE MAIS OU DE MENOS
Oscar T. Matsuura
Professor Associado aposentado do IAG/USP
Pesquisador Colaborador do MAST/MCTIC
Introdução
Um estudo veiculado em março passado confirmava um resultado anunciado antes, defendendo a existência de uma galáxia sem matéria escura. O anúncio soava esdrúxulo porque, de acordo com o conhecimento vigente, todas as galáxias devem conter matéria escura. Logo, tal tipo de galáxia nem devia existir!
Na verdade, este assunto continua controverso. Mas, então, posso ser criticado por estar apresentando uma questão em aberto, que não constitui ainda um conhecimento astronômico consolidado. Porém, faço isso intencionalmente porque é importante que o público seja informado, não só sobre conhecimentos consolidados, mas também sobre os bastidores da construção do conhecimento científico, onde ficam perceptíveis os fatores humanos e sociológicos que interferem na ciência. Embora pretendamos que a ciência seja 100% objetiva, racional e universal, devemos saber que, sendo uma elaboração humana, isso será sempre um sonho impossível.
Matéria escura
Um primeiro esclarecimento se faz necessário. O que é matéria escura? Francamente, nenhum astrônomo sabe no quê ela consiste. Apenas se afirma que é um componente do Universo categorizável como matéria. Portanto, não se trata de energia. O adjetivo “escura” denota que é algo que não se mostra aos nossos sentidos, nem mesmo através dos instrumentos astronômicos. A matéria escura é invisível, não deixa ser iluminada, nem reflete a luz. Radicalmente, não interage com radiação eletromagnética de nenhum comprimento de onda. Talvez pudéssemos chamá-la “matéria transparente”, mas também não seria um nome satisfatório.
Com que fundamento, então, os astrônomos falam da matéria escura? Não seria pura invenção? Não! Os astrônomos podem argumentar com evidências observacionais que esse estranho tipo de matéria realmente existe. Vamos lá! Galáxias são basicamente imensas aglomerações de estrelas. O exemplo mais próximo é a Via Láctea ou a Galáxia (com G maiúsculo) que habitamos. Para ser exato é preciso dizer que, além das estrelas, as galáxias abrigam também nuvens de gás e poeira, campos magnéticos e raios cósmicos. Por enquanto listo apenas as entidades diretamente detectáveis.
Entretanto, estudos feitos em galáxias (inclusive na nossa) revelaram que suas estrelas orbitam velozmente demais, o que segundo a Teoria da Gravitação de Newton não pode ser explicado pela atração de toda a massa visível. Faltava massa!
Galáxias, por sua vez, geralmente estão acompanhadas de outras galáxias e formam aglomerados nos quais as galáxias estão gravitacionalmente ligadas entre si. A observação das galáxias em aglomerados de galáxias também revelou que seu movimento, com base na Teoria Newton era veloz demais tendo em conta a matéria visível. De novo, faltava massa!
Diante desses fatos os astrônomos se viram compelidos a postular a existência de um agente invisível, mas que exerce atração gravitacional nas estrelas, no caso das galáxias, e nas galáxias, no caso dos aglomerados de galáxias. Esse agente foi denominado “matéria escura”, que deveria estar presente no halo das galáxias (halo é a coroa ou auréola difusa de luz) e na parte central dos aglomerados de galáxias. A matéria escura, como disse, não interage com a radiação eletromagnética, mas deve interagir gravitacionalmente com a matéria ordinária, que é a matéria constituída de prótons, nêutrons e elétrons que compõe nossos corpos, os planetas, as estrelas etc.
Na ciência, tanto quanto possível as afirmações não são feitas com base num único argumento, mas, num conjunto de argumentos independentes. É fácil entender que uma afirmação que se sustenta no contexto de uma rede de formulações teóricas, em confronto com uma rede de evidências experimentais e observacionais, ganha uma credibilidade amplificada. Seguindo esta diretriz metodológica, a postulação da matéria escura foi checada observacionalmente em diferentes contextos, tais como lentes gravitacionais, Radiação Cósmica de Fundo (RCF) em micro-ondas, colisões de galáxias etc. Senão vejamos.
As lentes gravitacionais resultam do encurvamento da trajetória da luz pela presença de massa (matéria). Esse encurvamento é um efeito previsto pela Teoria da Relatividade Geral, de Einstein. Sua comprovação foi objetivada no eclipse solar de Sobral, CE, em 29 de maio de 1919. A massa do Sol encurvaria os raios de luz das estrelas de fundo, de modo que a posição das estrelas em volta do Sol numa fotografia tirada no eclipse, seria diferente da posição dessas mesmas estrelas numa fotografia tirada fora do eclipse. O encurvamento causado por massas muito maiores do que a do Sol – por galáxias inteiras ou por aglomerados de galáxias -, é muito mais pronunciado. Pode assim produzir efeito similar ao de uma lente de telescópio, intensificando a luz de objetos muito, muito distantes, que se encontram nos rincões mais afastados do Universo observável. O encurvamento da trajetória da luz pode ser explorado pelo astrônomo para estimar a massa de galáxias ou de aglomerados de galáxias causadores da deflexão da luz. Com base nessa estimativa da massa, confirmou-se a presença de matéria escura que não se manifesta como matéria luminosa.
A RCF pode ser efetivamente observada ainda hoje em micro-ondas. Ela provém de todas as direções do céu, o que significa que não provém de algum astro específico, mas trata-se de uma radiação cósmica, isto é, que preenche todo o Universo. Segundo a Teoria do Big Bang, há 13,8 bilhões de anos o Universo teria iniciado minúsculo, extremamente denso e quente. Com a constante expansão, violentamente acelerada logo no início por uma brevíssima “inflação cósmica”, o Universo teria crescido e resfriado. Passados “apenas” 390 mil anos, a temperatura teria baixado para cerca de 3 mil K, quando elétrons que até então eram cargas elétricas que se moviam livremente, puderam ser capturados pelos prótons formando átomos de hidrogênio, o elemento majoritário do Universo. Isso causou uma alteração radical no Universo: até então a matéria era opaca à radiação mas, a partir de então, ela se tornou transparente. A radiação que estava acoplada à matéria, dela se desacoplou e pôde se propagar livremente. Ora, a RCF que hoje observamos é essa radiação, só que a temperatura que era de 3 mil K, hoje resfriou para pouco menos de 3 K com a continuidade da expansão do Universo.
A RCF é impressionantemente homogênea em todas as direções, porém, observações muito precisas revelaram ínfimas variações de temperatura. Estas espelham as variações na distribuição da matéria que ficaram registradas na RCF, quando esta se desacoplou da matéria. Em simulações feitas com poderosos computadores, minúsculas flutuações de natureza quântica presentes no Universo primordial foram se amplificando e deram origem às diminutas variações de temperatura da RCF mencionadas acima, como também às atuais estruturas cósmicas formadas por galáxias, aglomerados de galáxias, superaglomerados de galáxias formando estruturas ainda maiores, semelhantes a um sistema de teias onde as galáxias, aglomerados e superaglomerados tendem a ocupar os entrelaçamentos das teias.
Mas, segundo as simulações e evitando entrar agora em maiores detalhes, o padrão observado na RCF das variações de temperatura em função do tamanho, não está de acordo com a atual estrutura do Universo, a não ser que, além da matéria ordinária se leve em conta também a matéria escura.
Nas colisões de galáxias ocorrem efeitos de maré, em que as galáxias sofrem deformações que, por sua vez, produzem efeitos espetaculares como a formação explosiva de estrelas em consequência da violenta compressão de gigantescas nuvens de gás e poeira que são a matéria prima para a produção de novas estrelas. O estudo de galáxias em colisão também evidencia a presença adicional de matéria escura.
Estimativamente o Universo é composto de 27% de matéria escura e 5% de matéria ordinária de modo que, há no Universo 27/5 = 5,4 vezes mais matéria escura do que matéria ordinária. Uma vez constatada a existência de matéria escura com essa alta abundância, ela não poderia ser ignorada na descrição do Universo e, de fato, ela foi incorporada na Cosmologia juntamente com a “energia escura”, outra componente sobre a qual nada direi agora para não distrair sua atenção.
A matéria escura, jamais vista diretamente, através de sua ação gravitacional seria como uma semente que determina o início da formação das galáxias com a matéria ordinária, esculpe suas formas e determina seus movimentos. Sublinho que a matéria escura mostra acoplamento com a matéria ordinária a partir de distâncias da ordem do tamanho das galáxias ou maiores, mas não em escalas menores. Por isso mesmo, a distribuição da matéria escura no Universo se mostra bastante heterogênea. Ela está acumulada em maior abundância na parte central dos aglomerados de galáxias e no halo e região central de galáxias. Aqui no Sistema Solar, sua presença é ínfima. O ar que respiramos é cerca de 1 sextilhão de vezes mais denso.
Equipe Dragonfly (Libélula)
Vimos que a razão entre matéria escura e matéria ordinária é 5,4. Essa é supostamente a razão inicial em todas as galáxias. É difícil estimar essa razão nas galáxias atuais porque a massa correspondente às estrelas (que podem ser efetivamente observadas), chamada “massa luminosa” não inclui a massa de matéria ordinária não luminosa que está presente nos planetas, nas estrelas de brilho fraco (que são as mais abundantes!), em anãs brancas, estrelas de nêutrons, buracos negros etc. Estimativamente essa razão é aproximadamente 20 em galáxias como a nossa, mas cresce para algumas centenas em galáxias menores (galáxias anãs). Isso porque, enquanto nas galáxias mais massivas a intensa gravidade “preserva” a razão inicial, em galáxias menores, forças exercidas seletivamente pela radiação (sim, pelos fótons!) só na matéria ordinária, podem expulsá-la da galáxia elevando o valor da razão.
A investigação sobre o comportamento dessa razão tornou-se desafiadora com a observação das galáxias chamadas “ultra-difusas”. Um exemplo isolado de galáxia ultra-difusa já era conhecido desde meados da década de 1980, mas só nos últimos anos começaram a ser descobertos novos exemplares que, por sua bizarrice no que tange exatamente à razão acima citada, suscitaram interesse. Hoje já somam quase mil. As galáxias ultra-difusas compõem uma classe de galáxias de luminosidade extremamente baixa, o que sinaliza escassez de estrelas, que seria consequência da escassez de gás que, como sabemos, é a matéria-prima para a formação de novas estrelas. Disso resulta também que essas galáxias contêm quase que exclusivamente, só estrelas velhas.
Com base na Teoria da Evolução Estelar, conhecemos várias características observáveis que denunciam a velhice de estrelas, tais como o baixo teor de elementos pesados. Estrelas velhas são compostas de matéria prima primordial, formada majoritariamente de hidrogênio e hélio (elementos leves) gerado nos primeiros minutos do Universo. Elas encontram-se geralmente em aglomerados globulares de estrelas (conjuntos esféricos de estrelas gravitacionalmente ligadas) que orbitam no halo de galáxias. Já estrelas jovens nascem de nuvens de gás e poeira enriquecidos mais recentemente de elementos pesados ejetados na explosão de supernovas, depois que esses elementos foram sintetizados no interior das estrelas por reações nucleares em escala de tempo da ordem de 10 bilhões de anos. Essa é a idade típica de estrelas velhas. Além disso, de um modo geral, estrelas jovens encontram-se perto dos locais de formação de estrelas, no disco galático, não no halo.
Muitas galáxias ultra-difusas foram encontradas pela equipe chamada Dragonfly Team, formada por uma dezena de professores de Astronomia e estudantes de universidades e institutos do Canadá, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Eles utilizam um telescópio de desenho bastante engenhoso chamado Dragonfly Telephoto Array, que consiste num conjunto de teleobjetivas justapostas, cada uma com seu respectivo chip CCD. Assim o conjunto é capaz de obter imagens eletrônicas de um extenso campo visual. O projeto tira vantagem do custo módico, como também da alta qualidade do recobrimento anti-reflexo aplicado na superfície das lentes, que reduz a luz parasita e permite obter, mesmo em solo, boas imagens na luz visível, de galáxias com brilho superficial extremamente fraco. O conjunto que na configuração final tem 48 teleobjetivas coleta luz como se fosse um telescópio refrator de 1 m. Esse instrumento está instalado num sítio recomendado para observações astronômicas chamado New Mexico Skies, numa região montanhosa a cerca de 160 km de El Paso, no Texas. A instalação é de propriedade particular e seus proprietários oferecem, além do local para acomodar e operar o instrumento, alojamento, oficina com serviços de mecânica, eletrônica etc. O telescópio pode ser operado remotamente pelos observadores.
Vista de uma parte do Dragonfly Telephoto Array. Fonte: https://www.dragonflytelescope.org/gallery.html
Muita matéria escura
Usando esse instrumento, a equipe descobriu na constelação da Cabeleira de Berenice a galáxia ultra-difusa que foi denominada Dragonfly 44. Nela chamou a atenção a escassez de estrelas. Para determinar a massa total dessa galáxia (matéria luminosa mais matéria escura), eles usaram o espectroscópio do Telescópio Keck II em Mauna Kea, Havaí. Ora, o espectroscópio é para o astrônomo uma espécie de velocímetro. Analisando com ele a luz de uma estrela, podemos saber a velocidade com que ela está se aproximando ou se afastando de nós. Trata-se de uma aplicação do efeito Doppler. Assim o espectroscópio atua como um velocímetro que mede a “velocidade radial” da estrela. Velocidade radial é a componente vetorial da velocidade ao longo da nossa linha de visada, portanto a velocidade é radial em relação a nós, observadores. O instrumento usado pelos astrônomos media a velocidade radial, não de apenas uma estrela individual, mas simultaneamente de todas as estrelas da galáxia. Como são muitas estrelas e cada uma tem o seu movimento de aproximação, ou de afastamento em relação ao observador, a medição coletiva da velocidade radial se apresenta na forma de uma dispersão estatística de velocidades em torno de uma velocidade média, dispersão essa que pode ser quantificada. No caso ela foi ±47 km/s, uma dispersão bastante alta que indicava que as estrelas orbitavam muito velozmente.
Para galáxias (assim como aglomerados globulares), sistemas com inúmeras estrelas gravitacionalmente ligadas, pode-se aplicar um teorema de base estatística que relaciona a dispersão coletiva da velocidade das estrelas com a massa total desses sistemas. Para a análise requer-se ainda o conhecimento do tamanho do sistema. Com esses dados, a massa total da galáxia foi determinada e o valor obtido surpreendeu os astrônomos, pois era muito grande, muito, muito maior que a massa de todas as estrelas visíveis. Ela foi estimada em 1 trilhão de sóis – aproximadamente a massa da nossa Galáxia. No entanto apenas 0,01% de toda essa massa se apresentava na forma de estrelas visíveis. Os restantes 99,99% ou virtualmente quase tudo era matéria escura. Aquela razão era enorme, >> 600! Esse resultado trazido a público em 2016 foi impactante e colocou desafios para explicar como essa galáxia teria se formado. Tendo essencialmente o tamanho e a massa de uma galáxia ordinária, Dragonfly 44 teria falhado na sua formação?
Ainda em Mauna Kea eles usaram também o Telescópio Gemini Norte para obter imagens dessa galáxia e viram que ela é circundada, como a nossa, por um halo abrigando aglomerados globulares de estrelas. Eram cerca de 100 aglomerados globulares, mais ou menos na mesma quantidade que na nossa Galáxia e em outras galáxias ordinárias. Praticamente as poucas estrelas dessa galáxia estavam nesses aglomerados, o que é estranho, mas sugere uma narrativa alternativa à falha na formação: num episódio mais recente de colisão com outra galáxia massiva, estrelas e/ou gás poderiam ter sido arrancados por forças de maré. Mais do que enriquecida de matéria escura, essa galáxia pode ter sido despojada de matéria ordinária!
Sem matéria escura
Prosseguindo na observação e estudo de galáxias ultra-difusas, em março de 2018 o mesmo grupo anunciou a descoberta na constelação da Baleia, da galáxia NGC 1052-DF2 (doravante DF2 onde DF vem de Dragonfly). A extrema escassez de estrelas se confirmou numa imagem do Telescópio Hubble, pois era possível enxergar, através da galáxia, estrelas bem mais distantes que estavam atrás. Mas DF2 era uma galáxia ultra-difusa peculiar, de tipo oposto a Dragonfly 44: desta vez a galáxia tinha muito pouco ou nenhuma matéria escura! Usando uma analogia, assim como não pode haver uma xícara de café sem xícara, também não poderia haver uma galáxia sem matéria escura já que, na formação da galáxia, a matéria escura faria as vezes da xícara, e a galáxia, a partir do gás de matéria ordinária se acumularia nela sob a ação da gravidade. Segundo essa analogia, DF2 seria o impossível café sem a xícara!
A determinação da distância da galáxia é uma tarefa crítica e que exige dos astrônomos muito critério. A equipe Dragonfly utilizou a flutuação do brilho “superficial” da galáxia como indicador da distância. Em cada píxel da imagem digital era medida a flutuação estatística do brilho, que depende da densidade de estrelas na galáxia e da distribuição de luminosidade entre as estrelas. Com o aumento da distância a flutuação decresce ou, em outras palavras, a distribuição do brilho torna-se mais homogênea. Esse método requer uma boa calibração. A equipe obteve a distância de 65 milhões a.l. (a.l.: ano-luz é a distância percorrida pela luz em um ano = 9,46 trilhões km).
Essa estranha galáxia fazia parte de um conjunto no qual a grande galáxia elíptica NGC 1052 era dominante em termos de massa. Em imagens anteriores DF2 já tinha sido vista, mas aparecia apenas como um conjunto de pontos. Foi usando o Dragonfly Telephoto Array que ela apareceu com brilho tênue, mas como uma enorme bolha; e os pontos vistos antes apareceram como aglomerados globulares, porém maiores e contendo mais estrelas que os de nossa Galáxia com luminosidade equivalente. Medindo a velocidade orbital de uma dezena desses aglomerados, que se mostrou extraordinariamente baixa, determinou-se a massa total de DF2 que surpreendentemente resultou ser equivalente à massa total das estrelas visíveis, o que dispensava qualquer acréscimo de matéria escura. Portanto essa era uma galáxia sem matéria escura!
Milhares de outras galáxias ultra-difusas foram estudadas mas, na época, só DF2 mostrou escassez de matéria escura. Como ela teria se formado? Foi sugerido que seria o produto de uma recente colisão sofrida pela vizinha e dominante galáxia elíptica NGC 1052. De fato, essa galáxia apresenta sinais dessa colisão.
A inesperada notícia foi saudada por muitos que se sentiram estimulados pressentindo que premissas básicas sobre a matéria escura precisariam ser revistas. Mas suscitou também ceticismo naqueles que acharam bizarra demais a ideia de galáxias sem matéria escura. Para alguns críticos, o tamanho e o brilho alegados pela equipe Dragonfly eram muito grandes e fugiam do padrão usual, o que levantou suspeitas na determinação da distância. Eles questionaram este ponto e, considerando que a distância estava tendenciosamente aumentada pela combinação de vários fatores, eles utilizaram outros métodos e obtiveram uma distância menor, de 42 milhões a.l. Assim a massa total caía para a metade e a massa das estrelas para ¼ dos valores inicialmente calculados, e a galáxia passava a ter matéria escura em quantidade que podia ser considerada normal.
Confirmação?
Em meio a essa controvérsia, a equipe Dragonfly voltou anunciando a descoberta de uma segunda galáxia, também da categoria das ultra-difusas sem matéria escura. Com isso DF2 deixou de ser algo único e excepcional, o que aumentou a crença na existência de tais objetos.
A nova galáxia, NGC 1052 DF4 encontra-se na mesma região do céu, tem aproximadamente o mesmo tamanho e massa de DF2. Também tinha aglomerados globulares orbitando no halo e, analisando o movimento de 7 dos mesmos, concluiu-se de novo que a velocidade era significativamente baixa e compatível com uma galáxia cuja massa total era apenas a das estrelas visíveis, sendo desnecessário postular adicional matéria escura. Os críticos continuaram objetando que a velocidade dos aglomerados globulares não teria sido determinada corretamente e/ou que a amostra era muito pequena para se tirar conclusões seguras.
Mais tarde os astrônomos da Dragonfly utilizaram um novo imageador do Telescópio Keck II para reobservar DF2. O instrumento se mostrou capaz de detectar objetos de brilho débil com alta resolução especial. Desta vez nem mesmo foi necessário medir o movimento dos aglomerados para determinar a massa da galáxia. Eles analisaram espectroscopicamente a luz de 10 milhões de estrelas. Obtiveram uma dispersão de velocidades estelares que se reconfirmou pequena, sintoma de pouca massa e ausência de matéria escura. Esse mesmo resultado foi confirmado nas observações do Very Large Telescope (avançadíssimo sistema de 4 telescópios de 8,2 m de diâmetro que podem ser operados conjunta ou separadamente) do Observatório Austral Europeu (ESO) instalado no deserto do Atacama, no Chile.
Mesmo assim as críticas continuaram e a equipe Dragonfly reestudou DF4 utilizando desta vez novas imagens do Telescópio Hubble. A distância foi determinada com um outro método, baseado na hipótese da luminosidade constante no infravermelho, das estrelas gigantes vermelhas. Relembrando o exemplo das lâmpadas domésticas que usei anteriormente, era como se todas as estrelas gigantes vermelhas fossem lâmpadas iguais, digamos apenas para fixar um valor, de 120 W. Então essas estrelas podem ser utilizadas como “indicadores de distância” porque, se a luminosidade delas é constante, o brilho medido na Terra por um observador diminuirá segundo o inverso do quadrado da distância (o brilho da lâmpada de 120 W também decresce assim). Aí está, portanto, como se pode determinar a distância da galáxia. Usando esse método os observadores confirmaram a distância determinada anteriormente para DF4, que era a mesma determinada também para DF2.
Comentários finais
Além de continuar buscando o desfecho deste debate, os astrônomos também especulam imaginando cenários que possam dar origem a galáxias sem matéria escura ou só de matéria escura. A questão central é: como se pode desacoplar a matéria escura da matéria ordinária em escalas galáticas ou maiores? Isso parece possível no cenário de colisão de galáxias envolvendo efeitos de maré e posterior formação explosiva de estrelas. No ambiente de intensa formação estelar entra em ação a pressão da radiação que atua seletivamente só na matéria ordinária, mas não na matéria escura, e na direção oposta à da gravidade estelar. Isso teria um papel crucial na segregação da matéria ordinária em relação à matéria escura. O posterior recolapso da matéria segregada poderia originar, tanto galáxias formadas quase que exclusivamente de matéria escura, como Dragonfly 44, quanto a galáxias formadas quase que exclusivamente de matéria ordinária, como DF2 e DF4. Mas só com muita observação e estudo essa ideia poderá ser confirmada ou descartada.
Busca em laboratório
Enquanto os astrônomos investigam a matéria escura olhando o céu, físicos experimentais da área de Física de Partículas a procuram em laboratórios aqui na Terra. Os físicos teóricos dessa mesma área já propuseram várias partículas candidatas a matéria escura que já estão sendo estudadas. Eis as candidatas mais citadas: áxions, neutrinos “estéreis” e WIMPS (Weakly Interacting Massive Particles). Outra alternativa radicalmente diferente porque dispensa matéria escura, é a postulação de uma modificação nas leis clássicas da Gravitação de Newton no contexto de grandes distâncias cósmicas.
Muitos experimentos para investigar as possíveis peças fundamentais da matéria escura, requerem detectores que operem protegidos no subsolo, onde a radiação que atinge a superfície seja impedida de penetrar. Como os detectores são super-sensíveis, mesmo no subsolo eles ainda precisam ser protegidos, ora por tanques de água ou outro líquido, ora por algum tipo de plástico, mas o bloqueio de raios gama (os mais energéticos do espectro eletromagnético) requer cobre ou chumbo. Aqui é que o chumbo do carregamento de velhos naufrágios desperta grande interesse não só porque, passados alguns séculos, o chumbo radioativo já teve tempo para ter decaído no chumbo estável no fundo do mar, como também porque esse chumbo ficou protegido da radiação cósmica que poderia torná-lo radioativo. Mas isso traz um conflito de interesse entre arqueólogos que defendem relíquias históricas e os cientistas da Física de Partículas. Como sair do dilema entre a preservação de um potencial valor arqueológico e a detecção da matéria escura?